O governo da China está encarcerando, sem acusação formal e sem julgamento, milhares de chineses da etnia uigur, habitantes da província do Xinjiang. Também está demolindo mesquitas e bairros populares. A cultura dos uigures está sob ataque. Um relatório apresentado há pouco no Conselho de Direitos Humanos da ONU fala em um milhão de detidos, para uma população na casa dos dez milhões de uigures. Pequim nega todas as acusações, bem como a existência de campos de detenção. No máximo, as autoridades admitem uma política de “reeducação”, destinada a combater o que o governo vê como os “três inimigos”: o separatismo, o terrorismo e o extremismo religioso.
Mesquita de Id Kah, no centro antigo de Kashgar, que escapou às demolições
Os alvos, o povo uigur, são muçulmanos. Culturalmente, identificam-se muito mais com os os vizinhos da Ásia Central, como o Cazaquistão, o Quirguistão ou o Afeganistão, todos pertencentes ao tronco etno-linguístico turcomeno e igualmente islamizados. E o que fizeram de concreto milhares de uigures para receber tal tratamento do governo chinês? Nada. Nada que justificasse essa escala de reação, pelo menos. Contra uns bastou a prática religiosa, como guardar o jejum no mês do Ramadã. Para outros, conversar pelo celular – devidamente monitorado – com parentes e amigos no exterior.
Leia a história narrada em reportagem da BBC: uma cidadã uigur vive em Londres e recebe a visita da mãe, que saiu da China com permissão das autoridades; telefona assim que a mãe retorna, para saber se a viagem tinha ido bem; naquele momento, a mãe avisa a filha que está sendo visitada por policiais; a filha não consegue mais contato com a mãe. Morreu? Improvável: o internamento é o método.
Essa é a face mais visível do autoritarismo derivado da política preventiva do Partido Comunista Chinês para combater qualquer foco de contestação, especialmente em sua atual fase de concentração autocrática de poder personificada por Xi Jinping. Nesse momento, repetem-se algumas linhas de força da história da China, como por exemplo a concentração imperial do poder vir acompanhada de maior abertura do comércio para o mundo. Segundo o dogma multissecular, há que ter pulso firme para organizar o imenso território chinês, submetendo-o às mesmas regras.
Na semana passada, um documento assinado por representantes de 22 governos (incluindo Reino Unido, Japão e Canadá) e pelo CDH-ONU foi entregue a representantes do governo chinês solicitando o fim da política discriminatória e do encarceramento em massa do povo uigur. A prova capaz de reunir tal apoio internacional para pressionar o mastodonte chinês são imagens de satélites captadas entre 2015 e 2019 por instituições tão distintas quanto o Google Earth e o Sistema Europeu de Satélites.
Tais imagens demonstram a construção e/ou ampliação acelerada de imensos campos de detenção, sobretudo a partir de 2017 e 2018. Estima-se que até o final do ano passado a área do Xinjiang ocupada por esses campos de “reeducação”, no eufemismo utilizado pelo governo da China, fosse de 440 hectares. Analisando as fotos dos satélites, arquitetos e outros especialistas em segurança estimaram que alguns desses locais possam comportar mais de cem mil pessoas, em espaços exíguos construídos a baixo custo. Observa-se também cidades crescendo em torno desses campos, como na localidade de Dabancheng – afinal, a “reeducação” e o controle social demandam muita gente, como policiais, agentes de segurança e tecnologia (já que os uigures são amplamente controlados por biometria e senhas de acesso) e até mesmo por professores, que ensinam mandarim (o chinês oficial) aos internos.
O governo do Xinjiang nega qualquer internamento compulsório ou desaparecimento de pessoas. Na TV estatal, uma forte campanha apresenta as “escolas” para uigures: ambientes limpos, jovens saudáveis e agradecidos empenhados nas aulas, devidamente ministradas em mandarim. Difícil não lembrar de quando os nazistas convidaram estrangeiros para conhecerem as maravilhas do campo de Auschwitz a fim de desmentir que os judeus estivessem sendo maltratados.
Jornalistas têm tido muita dificuldade para chegar à região e ainda mais para circularem próximos aos campos, além de serem constantemente alertados por policiais para não falarem com a “gente ruim da região”, ou seja, os uigures. A BBC realizou uma extensa reportagem e muito do que constatou são, exatamente, as infraestruturas e produtos da ocultação: imensas cercas, postos de vigilância, torres de controle, ruas vazias, o afastar-se rápido do cidadão uigur que teme falar e ser preso em seguida (conversas no WeChat podem levar imediatamente à prisão).
Os repórteres relatam o desaparecimento dos sinais de uma sociedade islâmica: nenhuma das mulheres vistas cobria a cabeça com lenço; as longas barbas foram cortadas; não há oração pública, pois as mesquitas foram destruídas ou desativadas. Os uigures e sua cultura estão sendo paulatinamente suprimidos, não pelo extermínio físico, mas pela “reeducação”.
Imagens de satélite de setembro de 2018 e abril de 2019 mostram a demolição de uma mesquita em Kargilik, no sudoeste do Xinjiang
Autoridades em Dabancheng explicaram que o objetivo é combater o extremismo por meio de uma mistura de ensinamentos sobre o ordenamento legal chinês (entenda-se a exaltação do Estado-Partido), trabalhos manuais e aprendizagem do chinês (mandarim). A imposição linguística é, certamente, elemento crucial nessa operação para apagar a cultura dos uigures, baseada no islamismo. Os internos devem declarar fidelidade absoluta ao Partido Comunista e ao líder Xi Jinping, renegando sua religião e, por extensão, seu modo de vida. Ex-prisioneiros que conseguiram sair dos campos e partiram para o exílio afirmam que as torturas físicas e psicológicas são constantes, em um processo de “lavagem cerebral” típico de regimes totalitários. A China tem bem fresca essa experiência, pois a Revolução Cultural (1966-1976) – um dos maiores atos de vandalismo cultural do século XX – está ali, na esquina da memória.
Historicamente, a província de Xinjiang sempre guardou certa autonomia diante dos governos de Pequim, incluindo vários episódios de enfrentamento que se tornaram mais violentos nesses tempos de emergência do fundamentalismo religioso. Confrontos em 2013 e 2014 com centenas de mortos deixaram claro para o governo central que o separatismo de fundo islâmico poderia se tornar um problema. O temor é agravado pelo conhecimento de dezenas de uigures que foram para a Síria se juntar a grupos extremistas como o Estado Islâmico.
O que se observa no Xinjiang é a aplicação dos novos conceitos de guerra urbana, nos quais a população civil é tratada como inimiga e a cidade é o campo em disputa. A cidade de Kashgar – de mais de dois mil anos; um oásis em meio aos altos planaltos da Ásia Central e por isso mesmo um dos pontos de passagem obrigatórios da Rota da Seda – teve boa parte das construções de seu centro histórico postas abaixo a fim de facilitar a passagem das tropas chinesas. Demolir paredes também é demolir memórias.
O centro antigo da cidade de Kashgar, antes da destruição extensiva destinada a facilitar o deslocamento das forças policiais
Os membros do Partido que divergem dessa política de “reeducação” alertam para o risco de se obter o efeito contrário, que é insuflar o separatismo, ao invés de eliminá-lo. Afinal, existem razões materiais relevantes por trás de toda essa história. É que a província do Xinjiang não é apenas uma vasta área de fronteira com o mundo muçulmano: ali também existem imensas reservas de petróleo e gás natural responsáveis por vultosos investimentos na região nos últimos anos, bem como pela chegada massiva de migrantes chineses da etnia han (majoritária na China, o que sugere uma política de “colonização” do interior do país). Os uigures notam a distribuição desigual dos frutos desse crescimento e compreendem com quantos cifrões se destrói a história de um povo. Difícil não haver ressentimento.
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