Há 70 anos, o governo da África do Sul começou a erguer o ordenamento legal responsável pela instituição do regime do apartheid (apartado, separado), através da proibição do casamento entre pessoas brancas e negras, aprovada em 24 de junho de 1949.
Desde o século XIX, o racismo se tornou um componente do discurso político, justificado por convicções científicas e amparado nas experiências coloniais. Ao conquistarem o Estado e passarem do discurso à prática, os partidos que defendiam tais ideias acreditavam piamente agirem de acordo com a “ordem natural” das coisas e não se viam como vilões. Todavia, eles afrontavam uma ideia que precedia o racismo: aquela que afirma que todas as pessoas nascem livres e iguais e que o Estado existe para preservar esses direitos fundamentais.
Texto original em inglês da Lei de Proibição de Casamentos Interraciais
Os Estados racistas exemplares foram a Alemanha nazista, os Estados Unidos, pelo segregacionismo dos estados sulistas, e a África do Sul do apartheid. Mas a singularidade do apartheid é que ele foi imposto por colonos de origem europeia que afrontavam a metrópole colonial (o Reino Unido) para erguer um Estado independente na África.
Para os racistas, o papel primordial do Estado é preservar a pureza das raças e evitar a miscigenação, uma vez que dessas diferenças decorrerão direitos distintos. Por isso, também na Alemanha nazista e nos EUA encontramos leis proibindo casamentos inter-raciais. As Leis de Nuremberg (1935) interditavam os casamentos entre arianos e judeus e levaram à elaboração de árvores genealógicas para determinar o percentual de “sangue judeu” de um indivíduo. Nos estados do sul dos Estados Unidos, a regra da “gota de sangue única”, estabelecida pela Lei da Integridade Racial da Virgínia (1924), proibia casamentos interraciais.
Setenta anos depois, relembremos esse odioso regime político que conseguiu sobreviver por cerca de 45 anos, em um mundo que havia aprovado a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Carta da ONU Contra o Racismo (1963).
A história do apartheid é, a princípio, uma história das concepções religiosas-nacionalistas-raciais dos africâneres (afrikaners). Esses descendentes de colonizadores calvinistas holandeses e franceses chegados nos séculos XVII e XVIII e conhecidos como boeres, acreditavam que a diferença entre negros e brancos, assim como o direito dos segundos escravizarem os primeiros, tinha explicações bíblicas (o mito de Cam).
Por isso, quando os britânicos, atraídos pelo ouro e diamantes, aportaram na região do Cabo com seu discurso liberal e abolicionista, os boeres decidiram simplesmente empreender uma grande migração para o interior, para que seu estilo de vida não fosse ameaçado. Eles rumaram para os planaltos ao norte e deixaram a costa para os recém-chegados. O Grande Trek (1836) é um momento mítico na formação do país, pois explica a expansão das fronteiras graças à marcha heroica dos homens brancos, mas oculta a ocupação das terras habitadas por populações negras pré-existentes. Décadas depois, um novo avanço britânico provocou a inevitável disputa por territórios e soberanias, desaguando nos dois episódios da Guerra dos Boeres (1880/81 e 1899/1902) e na incorporação das terras da África do Sul ao Império Britânico.
A guerra foi uma carnificina entre brancos e quase exterminou os boeres. Entretanto, as afinidades religiosas e raciais – que, no caso, significavam duas minorias interessadas em manter o controle sobre aquele rico território – levaram a um acordo de autonomia, em 1910: a criação da União da África do Sul. Na nova entidade política, britânicos e africâneres governariam juntos por meio de um Parlamento local, conquanto permanecessem súditos da Coroa Britânica. Juntos, também, explorariam a massa de habitantes negros espoliados de suas terras e os imigrantes trazidos da Índia para trabalhar nas minas, todos reduzidos à condição de subproletários.
Daniel Malan, primeiro-ministro sul-africano entre 1948 e 1954, o “pai do apartheid”, capa da Time de 5 de maio de 1952
A fusão entre raça e classe, assim como no sul dos Estados Unidos, refletia o processo de formação das propriedades e das relações de trabalho. Ainda no período colonial, a Lei de Terras distribuíra os direitos de ocupação: os negros, que constituíam dois terços da população, teriam direito a apenas 7,5% das terras, enquanto os brancos, um quinto da população, ficavam com 92,5%. Os mestiços (coloured) sequer eram considerados. Na prática, a lei impedia que negros e mestiços pudessem atuar como agricultores ou pecuaristas autônomos, forçando-os ao assalariamento em condições aviltantes. Em 1918, bem antes da instituição oficial do apartheid, a Lei sobre Nativos em Áreas Urbanas obrigou os negros a viverem em locais pré-determinados pelas autoridades.
Apesar do “acordo de brancos”, africâneres e britânicos tinham opiniões conflitantes sobre os “não-brancos” e seus direitos. Os africâneres se organizaram para conquistar o poder, e o fizeram em 1948, quando o Partido Nacional obteve maioria parlamentar, por pequena margem, num eleitorado formado apenas pelos brancos. O novo governo foi encabeçado por um pastor protestante chamado Daniel Malan, o responsável pela implantação de um regime baseado no princípio da desigualdade racial e da superioridade do homem branco sobre os demais, na contramão da história.
Durante décadas – sobretudo a partir de meados dos anos 1980, quando se multiplicaram os boicotes econômicos, esportivos e culturais à África do Sul – os sucessivos governos do Partido Nacional ignoraram o resto do mundo. Foi preciso que as placas tectônicas da Guerra Fria se movessem para que o regime perdesse, de fato, sustentação internacional e o apartheid chegasse ao fim. O final veio em 1994, quando Nelson Mandela foi eleito presidente da República, na primeira eleição onde todos votaram em igualdade e o Congresso Nacional Africano (CNA), maior partido da resistência ao apartheid, chegou ao poder.
O apartheid se destacou pela minuciosa estrutura legal criada para segregar a parcela majoritária da população com base em critérios raciais. E, embora o sistema de discriminação estatal tenha se consolidado a partir de 1948, suas bases jurídicas começaram a ser desenhadas ainda no período colonial.
A Lei de Proibição de Casamentos Mistos (1949), contudo, estabelecia a segregação em um novo patamar – o do desejo romântico de impedir qualquer transformação do status quo. A lei proibia os casamentos interraciais e anulava os já realizados; além de prever pesadas multas para o funcionário que os realizasse. E, para que não restasse dúvida, a Lei da Imoralidade (1950) criminalizou qualquer ato sexual entre homens e mulheres brancos e negros.
O apartheid apoiava-se sobre um tripé legal. O segundo era a Lei de Registro de População (1950), que dividiu as pessoas em quatro grupos raciais. Inicialmente eram três grupos: pretos, brancos e mestiços (colored); posteriormente vieram os “indianos”, trazidos pelos britânicos para trabalharem na província oriental do Natal e vistos como “sem direito histórico ao país”. Na oportuna matemática do Partido Nacional, sempre focada em preservar o poder político, “branco” era todo aquele que falasse inglês ou africâner. Já os negros foram divididos em cinco grupos linguísticos e nove etnias. De acordo com o grupo racial ao qual o indivíduo pertencia, variavam os direitos sociais e políticos, as oportunidades educacionais e o status econômico.
Por fim, o tripé completava-se com a Lei de Áreas de Grupo (1950), que determinava o território onde cada um poderia viver, de acordo com sua etnia. Essa lei assegurava o domínio branco sobre a quase totalidade das terras e recursos do país, e foi complementada pela Lei de Autodeterminação dos Bantos (1951), destinada à criação de estruturas governamentais separadas para cidadãos negros. As duas leis esboçavam o projeto de fragmentar a população negra em unidades territoriais autônomas (bantustões). Em 1958, o projeto explicitou-se pela Lei de Promoção do Auto-Governo Negro, que incentivava a criação de “pátrias” (homelands) nominalmente independentes para as diferentes etnias negras oficiais.
Ato inaugural na história da resistência: comício de lançamento da Campanha do Desafio, liderada pelo Congresso Nacional Africano, em 1952
A intenção era clara. Quanto mais difícil se tornava, do ponto de vista internacional, sustentar a discriminação racial em bases legais, mais o Partido Nacional operava para conceder uma independência nominal aos bantustões. De acordo com o plano, todos os negros seriam convertidos em cidadãos dos seus respectivos bantustões. A solução perfeita, do ponto de vista do regime do apartheid, conciliava dois elementos: a manutenção da dependência econômica dos negros e a eliminação de qualquer expectativa de direitos políticos ou sociais da maioria negra na África do Sul.
“O empreendimento do apartheid envolveu, crucialmente, a fabricação de nações étnicas. Assim como os intelectuais africâneres narraram a história dos bôeres, eles produziram narrativas acadêmicas sobre os grupos étnicos definidos pelo Estado racial. Historiadores, antropólogos e linguistas empenharam-se na descrição das culturas singulares dos nativos, partindo do paradigma romântico de que a cultura é uma essência ancestral, um atributo quase biológico de grupos rigidamente delimitados. O censo e o museu desempenharam funções paralelas na política de separação de raças da África do Sul. O primeiro fixava nas estatísticas a presença demográfica das etnias; o segundo expunha as evidências materiais da singularidade imanente de cada uma.” (Demétrio Magnoli. Uma gota de sangue. SP: Contexto, 2009, p. 74).
Fincados os pilares do apartheid, em 1953, a Lei de Reserva dos Benefícios Sociais introduziu a discriminação no cotidiano das pessoas. A partir de então, foram minuciosamente traçadas as fronteiras entre “brancos” e “não-brancos”: acesso a locais públicos como praças, praias, ônibus, hospitais eram identificados por placas com os dizeres “apenas para brancos”. Por essa lei, o governo eximia-se da obrigação de oferecer serviços públicos da mesma qualidade para todos. A imagética da segregação nos lugares e serviços públicos, originalmente criada no sul dos EUA, era copiada pelo Estado racista sul-africano.
Naturalmente, esse modelo político imposto pelo Partido Nacional e seus eleitores africâneres não foi implantado sem despertar reações cada vez mais violentas da população oprimida. No centro da resistência, estava o CNA, criado em 1912 para defender os direitos dos negros da África do Sul. Uma nova geração de líderes – entre eles, Nelson Mandela – emergiu nos anos 1940 sob a dupla influência do marxismo e da doutrina da desobediência civil. O primeiro era representado pelo Partido Comunista Sul-Africano, que operava no interior do CNA. A segunda inspirava-se na pregação de Mahatma Gandhi, que começou sua carreira de ativista na província do Natal e cujas ideias repercutiam entre os sul-africanos de ascendência indiana.
Dois dias depois da aprovação da Lei dos Casamentos, em 26 de junho de 1949, o CNA convocou a militância para uma jornada de oração contra a nova lei, um protesto imediatamente reprimido. A partir de então, o 26 de junho foi escolhido para muitos outros eventos, motivo pelo qual os sul-africanos o nomearam Dia da Liberdade. No final daquele ano, o CNA adotou um programa de ação baseado na não-colaboração, na desobediência civil e na greve geral dos trabalhadores.
Em 26 de junho de 1955, milhares de partidários do CNA se reuniram em um campo de futebol nos arredores de Johannesburgo para aprovar a Carta da Liberdade, basicamente um programa de demandas por democracia. Começava com o mesmo preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos, “Nós, o povo da África do Sul”, e proclamava “A África do Sul pertence a todos quantos nela vivem, negros e brancos, e nenhum governo pode reclamar autoridade legítima a menos que esteja baseado na vontade do povo”. Quando Mandela foi preso e julgado como líder do CNA, em 1964, a mais patética das acusações qualificava a Carta da Liberdade como um documento marxista.
A identificação do “grupo étnico” funcionava como marca de exclusão: o portador não era um “verdadeiro” sul-africano.
Em 1956 foi introduzido o sistema de passes: os não-brancos eram obrigados a circular com carteiras de identidade que determinavam em quais áreas ele poderia circular. A ausência do documento levava, imediatamente, à prisão. Contra o ataque massivo às liberdades e à dignidade humanas, novas manifestações foram realizadas, culminando no massacre de Sharpeville, em 21 de março de 1960, que terminou com 69 mortos e quase 200 feridos. Então, pela primeira vez, a ONU começou a prestar atenção no apartheid. Na sequência de Sharpeville, o regime declarou ilegais o CNA e o Congresso Pan-Africano, outra importante organização do movimento de resistência.
Quase quinze anos se passaram antes que uma nova grande mobilização ocorresse. Ela veio em 16 de junho de 1976, quando os estudantes de Soweto, na periferia de Johannesburgo, iniciaram uma marcha pacífica pelas ruas para protestar contra a lei, criada um ano antes, que impunha o africâner como língua escolar, no lugar do inglês.
Os jovens se revoltaram não apenas pelo arbítrio de serem obrigados a aprender a língua do opressor, mas também porque a supressão do inglês praticamente os excluía do mundo exterior. As forças policiais abriram fogo indiscriminadamente contra os jovens, matando e ferindo centenas de pessoas. O número oficial é de quase duzentos mortos, mas há estimativas confiáveis de que chegaram à casa dos 700, além de milhares de presos. Adolescentes em sua maioria. A revolta de Soweto assinalou o início do declínio do apartheid, que logo enfrentaria o isolamento diplomático internacional.
Mandela foi condenado à prisão perpétua em 1964. No seu discurso de defesa, perante a Corte Suprema, ele usou a linguagem dos direitos humanos: “Acima de tudo, nós queremos direitos políticos iguais, porque sem eles nossas privações serão permanentes. Eu sei que isso soa revolucionário para os brancos neste país, porque a maioria dos eleitores serão africanos. Isso faz o homem branco temer a democracia. Mas não se pode permitir que esse medo feche o caminho à única solução que garantirá harmonia racial e liberdade para todos. Não é verdade que a emancipação de todos resultará em dominação racial. A divisão política, baseada na cor, é inteiramente artificial e, quando ela desaparecer, também desaparecerá a dominação de um grupo de cor por outro.”
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