DIANTE DA GUERRA ILEGAL DECLARADA NAS FAVELAS

 

Luiz Eduardo Soares

(Antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança Pública, autor de Desmilitarizar; segurança pública e direitos humanos, lançamento da editora Boitempo)
20 de maio de 2019

 

Vídeos do governador do Rio de Janeiro convocando a audiência virtual para acompanhá-lo na operação que liquidaria “a bandidagem” na cidade de Angra dos Reis chocaram os brasileiros. Já examinei os significados institucionais do discurso de “abate de criminosos”. Aqui, analiso as questões constitucionais suscitadas pelo sobrevoo midiático de Wilson Witzel.

Favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Devemos retomar o debate suscitado por organizações da sociedade civil e a Defensoria Pública, ao longo do governo anterior, a propósito de incursões policiais com helicópteros nas favelas do Complexo da Maré. 

O melhor é começar por uma analogia, para escapar aos automatismos obscurantistas do senso comum punitivista, que confunde vingança com Justiça e continua a crer que a repetição do que se fez no passado, com mais intensidade, produziria resultados distintos, e positivos.

Quando o governo federal contempla a hipótese de realizar uma intervenção pública que virtualmente implique prejuízos ou riscos para segmentos da sociedade, embora, supostamente, beneficie a maioria, obriga-se a cumprir requerimentos severos. Digamos, para ilustrar o argumento, que a União se disponha a construir uma hidrelétrica, uma usina nuclear, um porto ou a ampliar um aeroporto. A decisão definitiva não pode ser tomada sem que, antes, o Executivo se submeta a exigências específicas e rigorosas.

A primeira é o exame minucioso, por parte de órgãos competentes e independentes, dos riscos para a vida humana, animal, a biodiversidade e o meio ambiente que a obra planejada poderia provocar, ao longo da construção e subsequentemente. Os estudos não se reduzem a análises técnicas: envolvem, por meio de audiências públicas e outros recursos metodológicos, a participação direta dos grupos sociais que porventura se sintam potencialmente afetados. As demais exigências, caso a obra seja aprovada, comportam desde compensações antecipadas por eventuais perdas reparáveis até a adoção de procedimentos cautelares e protocolos estritos de conduta, ao longo de todo o processo de edificação e posteriormente.

Numa democracia, há razões para a existência de tais mecanismos: benefícios para a maioria não podem ferir direitos elementares de minorias, nem promover prejuízos (por exemplo, na esfera ambiental) que firam, indiretamente, o bem público originalmente visado. Políticas e ações públicas, mesmo bem intencionadas, podem produzir efeitos indesejados, alguns menos evidentes e previsíveis do que outros. Daí a necessidade de planejamento, do estabelecimento de limites e condições, e de permanente acompanhamento, seja técnico, seja comunitário, social, participativo.

A complexidade de políticas públicas requer controle por parte da sociedade, dos organismos de fiscalização, inclusive parlamentares, de entidades especializadas e de instituições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Justiça. Todo esse quadro se torna ainda mais denso, e tenso, quando conflitos de interesse revelam-se irredutíveis e irreconciliáveis, demandando mediações, em última instância políticas. Quando o que está em jogo não são apenas interesses ou perdas materiais, mas a própria vida humana, a situação se agrava exponencialmente.

 

A proteção da vida

Em abril de 2019, no Morro da Muzema, Zona Oeste do Rio, desabaram edifícios irregulares construídos pelas milícias

Em abril de 2019, no Morro da Muzema, Zona Oeste do Rio, desabaram edifícios irregulares construídos pelas milícias

Tomemos, por hipótese, o poder municipal e sua responsabilidade sobre a segurança dos locais que abrigam reuniões, festas e espetáculos. Sua autoridade, materializada nas agências da Defesa Civil e nos órgãos técnicos de apoio, é a contrapartida de sua responsabilidade, que expõe a prefeitura a ações públicas e judiciais, em casos de sinistro, sobretudo quando há mortes.

Se construções em áreas de risco mostram-se vulneráveis, é dever do Executivo municipal agir para prevenir danos irreparáveis para moradores e terceiros. Os direitos à propriedade privada e à inviolabilidade domiciliar são contrarrestados pelo dever do Estado de remover as vítimas potenciais e garantir sua vida, ante a iminência da catástrofe.

Da União aos municípios, passando pelos estados, todo o poder público está sujeito a restrições e condicionantes, assim como está obrigado a agir, quando se trata de promover e preservar o bem jurídico maior, o fundamento último do bem público, a vida da população, mesmo a vida individual – e não pode, para fazê-lo, produzir o resultado que sua ação se destina a evitar.

Sendo assim, é evidente que não encontra abrigo em nossa institucionalidade democrática, regida pela Constituição, qualquer decisão, providência ou ato de qualquer poder público que, em nome de benefícios à maioria e em contextos nos quais suas ações sejam evitáveis, ponha em risco a vida de qualquer cidadão ou cidadã. Não seria evitável, desse ponto de vista, a ação que, por omissão, produzisse o mesmo efeito negativo que provocasse por ter sido implementada. Evitável é a ação que, não existindo, deixa de promover o mal a que nos referimos.

A partir dessas considerações, deduz-se que são inconstitucionais decisões do poder público que ponham em risco moradores de comunidades sob o pretexto de combater o crime, ainda que a presença de criminosos na comunidade também representem risco, os quais, entretanto, transformam-se em danos reais apenas em momentos de confronto, seja com forças de segurança, seja com outras facções criminosas. Se o Estado não é capaz de impedir o embate entre facções, não pode promover confrontos ele próprio, gerando as condições que provocam riscos e danos ou mortes de inocentes.

É sabido que ações do Estado efetivas para a segurança pública, subtraindo poder dos criminosos, não se reduzem a confrontos, assim como é trivial reconhecer que o cenário de favelas fluminenses, onde atuam operadores do comércio varejista de substâncias ilícitas, ou milicianos, existe há décadas e não pode ser definido como emergencial. Nesse contexto, a suposta situação emergencial da insegurança no estado do Rio não justifica intensificar a insegurança nas comunidades. De fato, ao que parece, a alusão à “emergência” funciona como rota de fuga do Estado para mascarar a ilegalidade de suas próprias ações.

Deve estar em tela de juízo, portanto, o conjunto das operações policiais e/ou do Exército que coloquem em risco a população civil, seja em Angra dos Reis, seja no complexo da Maré ou em qualquer comunidade fluminense ou brasileira. Todas essas intervenções proto-bélicas que colocam em risco a vida de inocentes são, nesse sentido, inconstitucionais – e a experiência histórica demonstra quão desastrosas têm sido para a vida de famílias inocentes, além de inócuas para a solução dos problemas.

Foto postada nas redes sociais, em 2017, por integrantes de facção criminosa, em favela de Niterói (RJ)

Foto postada nas redes sociais, em 2017, por integrantes de facção criminosa, em favela de Niterói (RJ)

Certamente, poder-se-ia questionar o destaque aos aqui nomeados inocentes, uma vez que todos são inocentes até demonstrada e confirmada, judicialmente, eventuais responsabilidades criminais. Mas o destaque se justifica, para efeito dos argumentos aqui expostos, em razão de especificidades locais, relativas ao uso do armamento e suas implicações, em quadros conflagrados.

Se o ponto chave é a preservação do bem jurídico supremo, tema sobre o qual não se admite tergiversação, deduz-se quão impróprio é o emprego de armas em plataformas instáveis, como são os helicópteros. Esse recurso agrava o caráter inconstitucional de ações militares em áreas densamente povoadas.

Fixemo-nos, agora, em uma questão particular, sob ângulo complementar, para que retornemos as mesmas questões de outra perspectiva. No caso do emprego de armas em helicópteros em intervenções policiais em favelas, uma pergunta precede os argumentos: pode, e deve, a Justiça intervir, imiscuir-se e estabelecer parâmetros para ações militares?

A indagação autoriza uma segunda versão: a Justiça antecede a técnica, ou seja, sobrepõe-se a decisões de natureza tática e operacional? Se a resposta for positiva, mas a Justiça não agir, é legítimo recorrer a foros internacionais, em defesa dos direitos humanos violados? Quando se trata de parlamentar, poder-se-ia afirmar que, mais que legítimo, esse recurso extremo é necessário e imperativo?

 

Guerra legal e guerra ilegal

Consideremos a primeira questão, supondo que ações militares tenham por objetivo o enfrentamento de desafios bélicos à soberania nacional. A resposta razoável seria negativa, uma vez que a Constituição confere autonomia às Forças Armadas, uma vez declarada a guerra pelos poderes da República, para agir contra o inimigo externo, assumindo plena responsabilidade por seus próprios atos. Nessa hipótese, as ações bélicas seriam limitadas apenas por códigos internacionais que regulam atos de guerra e por normas ditadas pelas próprias instituições envolvidas, por isso regidas pela Justiça Militar, titular do poder que lhe delega o Estado democrático de direito.  

Nesse mesmo contexto, cujos parâmetros são dados por ameaça externa à soberania nacional, opções são adotadas como escolhas técnicas, uma vez que a estratégia, a defesa da Nação lhes confere esse estatuto, subtraindo-lhes substância jurídica, ou seja, extraindo-lhes conteúdo relativo a direitos, posto que os alvos das ações são desprovidos de cidadania no Brasil. Em outras palavras, na guerra, o general precede o juiz e o desloca (desloca sua função e sua matéria), no teatro de operações armadas, fora do território nacional.

Na guerra, a técnica (uso de armas, emprego de equipamentos, modos de sua utilização, métodos de ação) serve à finalidade, que a justifica, sem mediações. Os eventuais efeitos indesejados (colaterais ou casualties, no jargão internacional) representam o preço a pagar pelo cumprimento da missão, cuja efetividade constitui argumento suficiente para garantir a “legalidade” do procedimento, ou melhor, sua conformidade às normas consagradas na Justiça Militar e, por consequência, sua compatibilidade com expectativas do Direito. Dito de outro modo: a efetividade é sua legitimidade.

Entretanto, uma operação em território nacional densamente povoado – em uma favela ou em bairro nobre de centro urbano – não se define como militar, em sentido estrito, pela vontade de seus agentes, pela identidade institucional de seus agentes, nem mesmo pelo estatuto da missão, tal como postulado por declaração de um governador ou em decreto sancionado pelos poderes da República. Quando a operação se realiza em solo nacional e seus alvos, os suspeitos de crimes ou “traficantes armados” são cidadãos brasileiros, o que lhes confere direitos de cidadania.

Nesses casos, mesmo que liberalidades flexibilizem as regras de engajamento (o que, em si mesmo, deveria ser questionado), ou seja, mesmo que alvos sejam equiparados a inimigos (o que é constitucionalmente improcedente e, portanto, inaceitável), a sociedade e seus direitos mais elementares – em primeiro lugar, à vida – permanecem sendo indisponíveis e bem jurídico maior. Nada justifica colocar em risco a vida de cidadãos e cidadãs brasileiras inocentes, mesmo no contexto em que o Estado autorize enfrentamento armado aos criminosos, redefinidos como inimigos (redefinição cujo equívoco e gravidade não estou aqui subestimando).

Não havendo mais finalidades estratégicas superiores autossustentáveis, como no caso da guerra externa, as escolhas que visam realizá-las perdem seu aspecto exclusivamente instrumental, técnico e tático, e a interveniência da Justiça, limitando as condições das operações, torna-se não apenas aceitável, como imperiosa: não apenas uma possibilidade, mas um dever. A efetividade se redefine e não mais se identifica com legitimidade.

DIANTE DA GUERRA ILEGAL DECLARADA NAS FAVELAS

Por qualquer ângulo que se observe a questão, a conclusão é a mesma: justifica-se a intervenção judicial para impedir incursões militares a favelas ou quaisquer territórios vulneráveis (não menciono bairros nobres por motivos óbvios), colocando em risco a vida da população local. O uso de armas em helicópteros corresponde à hipertrofia dos riscos envolvidos nas ações – ou seja, apenas eleva a gravidade do descumprimento de preceitos constitucionais, por motivos materiais e técnicos, cuja evidência dispensa explicações.

Por esse conjunto de razões, e ante a omissão, prática e imediata, do Poder Judiciário, ditando a interrupção dos atos inconstitucionais do governador Witzel, é legítimo que qualquer cidadão apele a instâncias transnacionais, se não em nome da constituição nacional violada, em nome de direitos internacionalmente reconhecidos em tratados endossados pelo Brasil. A representantes políticos, não é apenas legítimo recorrer a fóruns e cortes internacionais, é imperioso fazê-lo, em nome da vida.

Portanto, presto aqui minha homenagem solidária à deputada estadual Renata Souza, que cumpriu seu dever ao denunciar as ações do governador à ONU e a OEA. Registro, ainda, que seu mandato, conferido pelos eleitores, titulares da soberania democrática, não pode ser cassado retaliatoriamente pela mera vontade dos deputados que sustentam Witzel, como se ensaia fazer. O mandato dela  não está disponível para os impulsos voluntaristas do governador: pertence a seus eleitores.

 

 

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