RESENHA: LUA DE MEL EM KOBANE

 

Júlia Magnoli

(Estudante de Relações Internacionais na PUC-SP e pesquisadora do site 1948)
20 de agosto de 2018

 

Lua de Mel em Kobane

 

Lua de Mel em Kobane

Patrícia Campos Mello

Companhia das Letras, 2018

 

Lua de mel em Kobane é um relato jornalístico que tem por fio narrativo a história de um casal sírio que decidiu se instalar e permanecer na cidade de Kobane, no contrafluxo do movimento que levou dezenas de milhares de pessoas a deixarem a Síria entre 2014 e 2015, para fugirem do fogo cruzado entre a guerra civil e o surgimento do Estado Islâmico. A autora, Patrícia Campos Mello, é jornalista, foi correspondente em Washington pelo Estado de S. Paulo e atualmente é repórter especial e colunista da Folha de S. Paulo. Já esteve na Síria, Iraque, Líbia, Turquia e Quênia fazendo reportagens sobre refugiados.

Em uma escrita fluida e atraente, Lua de mel em Kobane aproxima o leitor da realidade de um dos países mais complexos do Oriente Médio, para muito além do que é transmitido pela mídia brasileira, com sua limitada cobertura do noticiário internacional. Os fatos hostis da sangrenta Guerra da Síria ganham traços humanos à medida que conhecemos a história de Raushan e Barzan – o casal que se conheceu pela internet enquanto ambos viviam como refugiados na Rússia e Turquia, respectivamente.  Depois de se casarem, em 2014, eles decidiram retornar à Kobane. Ela, uma estudante que interrompera o curso de Direito na Universidade de Alepo após episódios de violência perpetrados por extremistas religiosos; ele, um repórter afastado do país por sua militância pela independência curda. Ambos são parte da etnia curda, um povo sem Estado que luta por independência e autonomia política.

Como retratado no livro, entrar em território sírio (e lá permanecer em segurança) é uma missão complicada, e por isso Patrícia foi acompanhada pelo casal durante sua estadia na região. Ela conta sobre a dificuldade enfrentada por jornalistas estrangeiros tentando cobrir a guerra – desde a autorização seletiva concedida pelo regime de Bashar al-Assad, que permite apenas representantes de veículos midiáticos simpáticos a seu governo, até os postos de fronteira com a Turquia, que proíbem a circulação de jornalistas temendo a oposição ao governo semi-ditatorial de Recep Tayyp Erdogan e a visibilidade que seria dada à população separatista curda. À Patrícia restou a entrada via Iraque, pelo Curdistão iraquiano (KRG). Foi a milícia curda (YPG), que atuava no norte da Síria combatendo o Estado Islâmico, que concedeu à autora a documentação necessária para circular em território sírio realizando as reportagens que dariam origem ao livro.

O livro apresenta amplo suporte histórico esclarecendo pontos importantes das questões do Oriente Médio, como os jogos de interesses envolvidos na região e seus reflexos na vida da população – que, numa árdua luta pela sobrevivência, se converte em refugiados e apátridas em diferentes países do mundo.

O livro destaca a questão curda, pouco conhecida no Brasil, mas que há décadas contribui para a instabilidade política na região, uma vez que a população curda, distribuída entre o sul da Turquia, norte da Síria e norte do Iraque, luta para se separar desses países e criar um Estado curdo, o Curdistão. Tratados como cidadãos de segunda classe desde 1946, data da independência da Síria, até então um protetorado francês, os curdos não podiam ensinar o kurmanji (língua curda) nas escolas, eram proibidos de imprimir livros em seu idioma e tinham restrições para construir ou alugar propriedades – sendo, assim, estrangeiros em sua própria terra (por sinal, os curdos são considerados um dos maiores povos apátridas dos dias atuais). A questão curda é um dos fatores importantes para a complexidade da guerra na Síria.

Diferentemente da maioria da população do Oriente Médio, os curdos não são árabes. Etnicamente, se aproximam dos persas, povo originário do território onde atualmente é o Irã. Na Síria, os curdos são cerca de 10% da população. A maioria é de muçulmanos sunitas. Mas há também curdos cristãos e yazidis, uma minoria religiosa que combina aspectos do islamismo, do cristianismo e do zoroastrismo” (p. 51).

Para explicar todo o contexto em que vivem (e coexistem?) os diferentes lados da guerra, Patrícia recorre ao processo que levou à partição geopolítica da região, simbolizado pelo acordo Sykes-Picot, entre Reino Unido e França, em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial. As duas grandes potências foram responsáveis por desenhar as fronteiras dos países do Oriente Médio que hoje conhecemos, de acordo com seus próprios interesses, não respeitando populações, etnias e religiões de cada local, gerando muitas das tensões que vemos há décadas nesses países (Iraque, Síria, Jordânia, Líbano, Israel).

Com a substituição do Tratado de Sèvres (1920), pelo Tratado de Lausanne (1923), que definiu as fronteiras da Turquia moderna, o projeto de autonomia do Curdistão foi por água abaixo. Os curdos passaram a ser vistos como imigrantes ilegais na Turquia. Na Síria, sua presença foi tratada como ameaça à integridade territorial e segurança do Estado. Nos dois países, as políticas estatais foram direcionadas a tolher direitos civis básicos e a ocupar as terras curdas. A cultura foi uma das poucas áreas que se mantiveram livre de perseguições, favorecendo a preservação da identidade.

No Iraque do ditador Saddam Hussein a situação tornou-se insuportável para os curdos durante a guerra Irã-Iraque, iniciada em 1980 (o livro também destaca a participação do Brasil na carnificina, com a venda de armamentos pela Engesa e Avibrás). Na Operação Anfal, um extermínio curdo foi operado por meio de armas químicas. Saddam inovou ao atacar seus próprios civis com armas químicas. Bashar al-Assad viria em seguida.

Em 2003, com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos de George W. Bush (pela acusação de posse de armas químicas, que nunca foram encontradas), e a queda de Saddam, os curdos iraquianos alinharam-se aos EUA e conseguiram estabelecer o Curdistão iraquiano (KRG). Os curdos na Síria se agitaram. O regime de Hafez al-Assad, implacável, reprimiu brutalmente reuniões e manifestações curdas, matando centenas, torturando outras centenas e tornando-se um regime perpetrador de graves violações aos direitos humanos. Quando o capítulo sírio da Primavera Árabe teve início, em 2011, os curdos pediram à oposição que reconhecesse a nação curda e prometeram ajudá-la contra o regime. O apoio foi dispensado pela oposição.

Nem Assad nem a oposição queriam herdar uma Síria sem a rica área curda, que possui petróleo em abundância e uma grande produção agrícola. ‘Resolvemos ser a terceira via, seguir um caminho independente’. O plano dos curdos era se organizar, criar uma milícia armada, a YPG, e ficar longe da guerra entre os árabes sunitas e alauitas na Síria” (p. 60).

Lua de mel em Kobane segue em sua narrativa que prende e instiga o leitor a ir até o final e entender as micro-relações que fazem do conflito na Sírio tão complexo. Além disso, a autora intercala a geopolítica da guerra com a história do casal, Raushan e Barzan, trazendo um toque humano e delicado ao livro. O casal a levou para entrevistar a família de Alan Kurdi (o menino de três anos que morreu afogado quando sua família tentava chegar à Europa em 2015 – sua foto na areia de uma praia turca correu o mundo, e foi inspiração para Patrícia ir à Síria), cujos avós ainda habitavam Kobane. Muitas famílias resistiram em meio ao cerco imposto à cidade pelo sanguinário Estado Islâmico, de setembro de 2014 até abril de 2015. Esse é outro tema investigado por Patrícia.

Leitura necessária para aqueles que buscam entender uma das maiores crises humanitárias da atualidade e suas necessidades; bem como o discurso de grandes potências e seus acordos a portas fechadas – os quais, longe de serem justos e buscarem soluções democráticas, promovem cada vez mais a segregação e discriminação social no cotidiano – levando, em última análise, às barbáries do século XXI, que ganham mais um capítulo com a Guerra da Síria.

Raushan, Patrícia e Barzan

Raushan, Patrícia e Barzan

 

 

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