“A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!” O bilhete, achado no bolso da calça do corpo sem vida de Luiz Carlos Cancellier, no pátio interno do Beiramar Shopping, Florianópolis, em 2 de outubro de 2017, girou os holofotes para um lado inesperado. Dezoito dias antes, numa operação imponente que mobilizou 105 policiais, a PF prendera subitamente o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Despido, algemado, exposto em uniforme laranja, o reitor ouviu a acusação de obstrução da Justiça, numa investigação de desvios de recursos de um programa de ensino à distância.
Dia seguinte, a reitoria amanheceu pichada com a frase sinistra: “Ladrões, devolvam os 80 milhões”. A força-tarefa da Operação Ouvidos Moucos, dirigida pela delegada Érika Marena, uma protagonista da Lava Jato, divulgara esse número fantástico, inacreditável, como valor dos desvios. Depois, quase casualmente, retificaria: investigavam-se desvios de R$ 500 mil. Cancellier não era acusado pelos supostos desvios, mas pelo “crime” de ter avocado para si a sindicância interna, por meio de ato administrativo público, oficial, documentado.
A prisão preventiva, autorizada pela juíza Janaina Machado, durou 30 horas. Durante a folga de Machado, uma juíza substituta não encontrou motivos para mantê-la, libertando o reitor. Cancellier, porém, foi proibido de colocar os pés na UFSC. O ato extremo, no Beiramar Shopping, concluiu a tragédia – ou melhor, o primeiro ato dela.
O segundo foi deflagrado em dezembro de 2017. Num evento acadêmico, o professor Aureo de Moraes, chefe de gabinete da reitoria, pronunciou algumas palavras em memória de Cancellier. Atrás dele, faixas com o rosto da delegada Marena continham frases de protesto contra o abuso de autoridade. Disso, a delegada extraiu motivos para abrir um inquérito contra o professor, acusando-o dos crimes de calúnia e difamação.
O vídeo do ato registra tanto o discurso quanto as faixas. Ele é a prova cabal de que o processo não passa de uma grosseira tentativa de intimidação, uma ferramenta para silenciar a universidade, calando as vozes que exigem da PF a exibição de provas contra Cancellier.
Tantos meses depois, as provas não existem. Felizmente, a tentativa de intimidação fracassou. O depoimento do professor Aureo, a seguir, evidencia que os colegas de Cancellier não desistirão de denunciar o arbítrio. Cabe à sociedade fazer o mesmo, em nome das liberdades públicas e das garantias legais do sistema democrático.
Luiz Carlos Cancellier (esq) e Aureo de Moraes
Antes eu tivesse concluído a Graduação em Direito, no idos da década de 1980, preterido em favor do Jornalismo, e agora entenderia o que são os crimes de calúnia e difamação. Lembro de ter estudado suas definições e uma busca no código penal hoje me permite conhecê-los.
Mas as circunstâncias que a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) enfrenta atualmente e os fatos desencadeados em setembro de 2017 me deixam confuso. Para evitar leituras equivocadas vou tentar buscar uma explicação por meio de exemplos.
Se consegui resumir os dois casos, parece-me óbvio que um deles contém elementos bastantes para caracterizar calúnia e difamação: “caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime” (artigo 138, Código Penal) e “Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação” (artigo 139, Código Penal).
Qual dos dois exemplos, afinal, encontra as condições para as tipificações criminais aqui apontadas? O primeiro, por óbvio.
ERRADO! Conforme sabe-se lá quais leis, ignoradas as garantias e direitos individuais e esquecidas por completo as definições mais pueris sobre honra, verdade, razão e credibilidade, o exemplo que expressa atos caluniosos e difamatórios é o segundo. Pelo menos para alguns, expressar opinião, manifestar indignação, expor atos de abuso de poder e arbítrio e, o que é pior, ser visto ao lado de faixas e cartazes em uma universidade é praticar calúnia e difamação. Assim, acadêmicos de direito, suas definições de calúnia e difamação foram atualizadas.
Muito triste tudo isso. Ainda tento suavizar, com essa brincadeira irônica. Mas é impossível desconsiderar o absurdo e o patético pelo qual estamos passando. E é verdadeiramente muito trágico.
Perdemos um amigo de décadas e ainda hoje acompanhamos de longe os outros, forçados ao exílio; vivemos dias pesados, difíceis, com a sombra da ameaça e do terror; alguns de nós temem trocar qualquer assunto pelo telefone ou mensagens de texto; temos agendas intensas, com psicólogos, terapeutas, médicos; e a instituição que defendemos precisa funcionar.
Tem sido um esforço gigantesco sobreviver àquilo que nos assolou e reagir para se recuperar. Reativar a autoestima, a paz e a harmonia. Mas tem muita gente que parecer negar esse propósito. Parecem apostar no “quanto pior, melhor”. Dentro e fora da instituição ainda pregam a narrativa do fracasso, da quadrilha, da “ORCRIM”, do desvio, da corrupção…
Ao longo dos últimos dez dias, porém, temos visto que a reação contra tamanhos absurdos é avassaladora. Vem de todos os lados, de milhares de pessoas, de instituições, das altas cortes, enfim, da sociedade que não crê nas novas definições de calúnia e difamação. Afinal, elas não foram atualizadas!
O que vivemos é muito cristalino: práticas de uma outrora sombria que nos impunha a intimidação como método e a censura como meio, ambas para um fim perverso: impedir que se revelem as verdadeiras faces do abuso e do arbítrio. Talvez se salve algo de algumas instituições. Mas há agentes que precisam entender que o ano em que vivemos é 2018. E não aquele ano que não terminou…
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