No início de junho, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) votou o início do processo de suspensão da Venezuela. A resolução baseou-se em devastador relatório da Comissão de Direitos Humanos sobre as violações reiteradas cometidas pelo regime de Nicolás Maduro. A OEA também se mobilizou, invocando a Carta Democrática Interamericana, contra o presidente Daniel Ortega, da Nicarágua, ex-guerrilheiro em vias de se tornar ditador, com prática diária de assassinatos. Vale a pena conhecer a história da OEA.
O que nos conta a história? A OEA tem sua origem mais remota na União Internacional das Repúblicas Americanas, criada em 1890 por iniciativa dos EUA. O continente precisa ter “voz autorizada diante de uma Europa colonialista e reincidente”, argumentavam os americanos na época.
No rastro das independências das nações hispano-americanas, os EUA estavam interessados em conter o influxo de capitais britânicos, que ocupavam os vazios deixados pelos espanhóis. Depois da Batalha de Ayacucho, no Peru, em 1824, a última contra a Espanha, e da qual participaram tropas britânicas, George Canning, o esperto chanceler imperial estranhamente homenageado com nome de rua no Rio de Janeiro, disse que “a América Latina é livre e, se Deus quiser, será nossa”.
Os EUA tinham ideias diferentes. Um ano antes da Batalha de Ayacucho, lançaram a Doutrina Monroe, que declarava a disposição de preservar o continente de “futuras colonizações europeias” ou, na síntese célebre, garantir “a América para os americanos”. O significado dos enunciados tornou-se mais claro com a invasão americana do México, em 1846. A entidade de 1890 transformou-se em União Panamericana e cumpriu à risca o papel de dar cobertura à consolidação da hegemonia hemisférica dos EUA.
Conferência Pan-Americana do Rio de Janeiro, 1906. Joaquim Nabuco, representante brasileiro, aparece à direita, de paletó aberto
Só na década de 1930 sofreu uma primeira mudança importante. Em 1936, diante da guerra mundial que se aproximava e da necessidade de ter aliados seguros na retaguarda, os EUA aceitaram “formalmente” o princípio da não-intervenção. Nos anos 1920, mais da metade dos diplomatas americanos serviam na América Central, onde se concentravam, junto com o restante da América Latina, os interesses de uma potência que, na época, tinha ambições mais ou menos regionais. Os EUA de antes da Segunda Guerra Mundial enxergavam-se como potência dominante nas Américas e como potência naval com interesses cruciais no Caribe e no Pacífico.
Embora os EUA tenham saído da Segunda Guerra Mundial como maior potência global, o Pentágono recomendou que a Doutrina Monroe continuasse vigente. O foco era, então, a luta contra um “novo império”, a União Soviética, ou um “novo tipo de colonialismo”, a expansão comunista. A OEA, versão da União Panamericana adaptada ao cenário da Guerra Fria, foi fundada em 1948 sob o signo do anticomunismo. De fato, porém, só foi ativada em 1954, ano em que o governo constitucional da Guatemala, acusado de comunista, caiu vítima de operação armada e financiada pela CIA, fato admitido pelo presidente Dwight Eisenhower (1953-61) em suas memórias.
O caso guatemalteco reforçou o arsenal ideológico de 1948. Foi incorporado à Carta da OEA o princípio de que o continente entraria em alerta toda vez que “o domínio ou o controle de instituições políticas de qualquer Estado americano pelo comunismo internacional” pusesse em risco a paz nas Américas. Seguiu-se a suspensão da Cuba castrista (1962) e o desembarque de fuzileiros navais na República Dominicana (1965). Sem implicação da OEA, mas com o apoio ou o patrocínio dos EUA, fizeram-se os golpes militares no Brasil (1964), no Chile (1973) e na Argentina (1976). A política dos EUA para a América Latina só começou a mudar sob o governo de Jimmy Carter (1977-1981), que se afastou das ditaduras militares da região.
O fim da Guerra Fria produziu um novo cenário e, na OEA, começou-se a falar em “defesa da democracia”. Em 1991, ano de dissolução da União Soviética, saudou-se o fato de que, pela primeira vez na história, não havia no plenário da Assembleia Geral da OEA nenhum governo que não tivesse origem em eleições. Sem o “inimigo externo”, a organização panamericana tinha que se reformar para não perecer. Em 2001, como resposta àquela necessidade, uma sessão especial da Assembleia Geral realizada em Lima (Peru) adotou a Carta Democrática Interamericana.
O tema dos direitos humanos está inscrito, ao menos retoricamente, em toda a história da OEA. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos nasceu em 1959. A Convenção Americana de Direitos Humanos foi firmada em 1969 e entrou em vigor em 1978. No ano seguinte, surgiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas a OEA só se comprometeu com a proteção formal do regime democrático com a Carta de 2001.
A Carta Democrática foi invocada pela primeira vez em 2002, na tentativa fracassada de golpe contra o venezuelano Hugo Chávez. Depois, em 2009, ela serviu de base à suspensão de Honduras, devido ao golpe que derrubou o governo de Manuel Zelaya. Ironicamente, é de novo a Venezuela que mobiliza a OEA – mas, desta vez, contra o regime chavista de Maduro. O voto pela abertura do processo ainda não significa a suspensão da Venezuela, que depende de nova deliberação, por uma improvável maioria de dois terços. De mais a mais, o regime de Maduro iniciou em 2017, unilateral e voluntariamente, o processo de retirada da OEA, um movimento que exige trâmite de dois anos.
Maduro acusa a OEA de representar os interesses do “imperialismo americano”. A acusação seria verdadeira, se lançada no passado. Hoje, como atestam as reações ao golpe anti-chavista de 2002 e ao golpe hondurenho de 2009, as coisas mudaram. No fim, os governantes autoritários da Venezuela e da Nicarágua infundem um sopro de vida numa organização que parecia fadada à irrelevância.
Herz, Mônica. “Carta da OEA (1948)”. IN: Magnoli, Demétrio (Org.). História da Paz, São Paulo, Contexto, 2008, p. 331-353.
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