TERROR DE ESTADO, VIA TRIBUNAIS

 

Demétrio Magnoli

30 de julho de 2018

 

Julgamentos em massa são indícios veementes de que, no lugar de justiça, o que se faz é repressão. Mas a prática encontra-se disseminada – e não apenas em Estados autoritários.

Em setembro de 2017, num julgamento midiático, mais de duas dezenas de acusados pelo fracassado golpe de Estado de 2016 apresentaram suas defesas perante um tribunal turco que abolira, de fato, o princípio da presunção de inocência. Em dezembro de 2017, a Human Rights Watch condenou os julgamentos em massa de supostos colaboradores do Estado Islâmico pelo Iraque e pelo Curdistão iraquiano autônomo, evidenciando que os juízes não distinguiam acusados por atrocidades, de médicos que salvaram vidas em cidades controladas pela organização jihadista.

No início de junho, uma foto anônima, captada numa pequena cidade do Texas e vazada à imprensa, mostrou uma cena do julgamento coletivo de dezenas de imigrantes, algemados e em uniformes prisionais laranja. Entre os réus, encontravam-se tanto imigrantes ilegais quanto solicitantes de asilo. A jornalista Debbie Nathan, que conseguiu cobrir alguns desses julgamentos coletivos, caracterizou-os como “desumanizadores” e indagou: “como isso poderia ser considerado o devido processo legal americano?”.

A diferença entre o julgamento fotografado no Texas e os ocorridos na Turquia e no Iraque é que, pelo menos, no primeiro caso, o juiz revelou algum apego aos direitos humanos elementares, pronunciando-se contra as separações de crianças e de seus pais na fronteira americana. Mas sabe-se que nem todos os juízes encarregados de sentenciar imigrantes nos EUA preocuparam-se com o tema da cisão de famílias.

Dezenas, não: centenas. No Egito do regime de Abdel Fatah al-Sisi, em 28 de julho, um tribunal sentenciou à pena de morte 75 dos mais de 700 réus em um processo sobre os choques de rua ocorridos após o golpe militar contra o governo de Mohammed Morsi, em julho de 2013. Depois do golpe, as autoridades aprisionaram milhares de pessoas, na sua maioria líderes e militantes da Irmandade Muçulmana, o partido de Morsi. O julgamento em massa é o coroamento daquela onda de repressão. Leais à ditadura militar implantada por Sisi, os juízes partem do pressuposto de que os réus são suspeitos de terrorismo, apenas porque o regime baniu a Irmandade Muçulmana, qualificando-a como organização terrorista.

A Irmandade Muçulmana flertou com o terror no passado distante, mas separou-se da facção jihadista na década de 1980. O governo de Morsi foi eleito livremente, no período turbulento que se seguiu ao levante popular contra a ditadura de Hosni Mubarak (1981-2011). O golpe militar que conduziu Sisi ao poder foi precedido por grandes manifestações populares contra a tentativa de islamização do país pelo governo Morsi. A intervenção militar provocou manifestações de partidários do governo deposto, que degeneraram em confrontos violentos com militares e policiais. Denunciando o julgamento em massa, a Anistia Internacional caracterizou-o como “grosseiramente injusto”, evidenciando que a condução do processo viola os direitos  humanos e a própria Constituição egípcia. A Anistia Internacional registrou, ainda, que “as autoridades egípcias jamais inquiriram ou processaram os agentes das forças de segurança” envolvidos nos confrontos.

As sentenças de morte ainda podem ser revistas. A lei egípcia exige que todas as sentenças sejam submetidas ao Grand Mufti, maior autoridade religiosa do país. A opinião do Grand Mufti não tem o poder de reverter decisões judiciais, mas costuma ser levada em conta.

A “justiça dos vencedores” aplicada no Egito não é apenas parte da campanha estatal de repressão à Irmandade Muçulmana. Os tribunais dóceis ao regime cumprem a função de aterrorizar a sociedade, calando as vozes dissonantes. Entre os mais de 700 réus, encontra-se o premiado fotojornalista Mahmoud Abu Zeid, conhecido como Shawkan, detido em agosto de 2013 enquanto fotografava uma violenta dispersão de manifestantes. Shawkan, cujas fotos foram publicadas por veículos como a BBC, Time, The Sun, Bild e Die Zeit, enfrenta diversas acusações farsescas que podem lhe valer uma sentença de morte.

Foto da campanha internacional pela libertação de Shawkan

           Foto da campanha internacional pela libertação de Shawkan

O “crime” de Shawkan foi registrar, com sua câmera, a ação das forças de segurança. O “crime” de Amal Fathy foi produzir um vídeo sobre o hábito do assédio sexual no Egito e postá-lo no Facebook. No início de maio, policiais da  Agência de Segurança Nacional invadiram a casa de Fathy e de seu marido, Mohamed Lotfy, e os conduziram à delegacia. No dia seguinte, o procurador local informou-lhes que Fathy é acusada de “difundir falsas informações”, “danificar a ordem pública e ferir o interesses nacional” pertencer a uma organização terrorista e usar a internet para “promover ideias e crenças que estimulam atos de terror”.

Fathy é utilizada como caso exemplar. Há pouco, o parlamento egípcio aprovou uma nova lei que criminaliza a “difusão de falsas informações” por qualquer um que tenha mais de 5 mil seguidores nas mídias sociais. Ela se junta a oito outros aprisionados nos últimos meses sob a mesma acusação básica, entre os quais o blogueiro Wael Abbas, a fotógrafa Fatma Eddin e o jornalista Moataz Wadnan, que conduziu uma greve de fome contra sua prolongada estadia em cela solitária. No grupo encontra-se, também, o editor-chefe do bloqueado site Masr al-Arabia, processado após a republicação de um artigo do The New York Times sobre compra de votos.

Donald Trump, com sua mania de acusar a imprensa de divulgar fake news,  tem responsabilidade indireta pela lei repressiva egípcia. O porta-voz do ministério do Exterior do Egito imitou a linguagem do presidente americano diante de uma reportagem da CNN. Na defesa da nova lei, parlamentares fieis a Sisi mencionaram repetidamente os tuítes de Trump.

Uma opinião do Grand Mufti pode até impedir a execução das 75 sentenças de morte, mas os promotores e juízes já cumpriram seus papéis na tragédia egípcia. A Irmandade Muçulmana converteu-se em pretexto útil. Indivíduos como Shawkan, Fathy ou Wadnan aprenderam o necessário sobre as implicações potenciais de textos ou imagens suscetíveis de irritar o regime.

 

 

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