“GUERRA AO TERROR”, A HISTÓRIA OCULTA

 

Demétrio Magnoli

16 de julho de 2018

 

O comitê de inteligência e segurança do Parlamento britânico (ISC) começou a contar a história oculta da “guerra ao terror” – ou, ao menos, o capítulo do envolvimento do Reino Unido nas operações secretas e ilegais conduzidas pela CIA nos anos seguintes aos atentados do 11 de setembro de 2001, em centros de tortura secretos.
Dois relatórios do ISC revelaram que o Reino Unido planejou, concordou ou financiou 31 operações de entrega de suspeitos a centros de interrogatório sob tortura. Há mais: surgiram provas de 15 ocasiões nas quais oficiais britânicos de inteligência consentiram com o uso de tortura ou presenciaram as sessões de interrogatório. Mais ainda: em 232 ocasiões, agências de inteligência britânicas providenciaram perguntas a interrogadores, mesmo sabendo ou suspeitando que métodos de tortura seriam utilizados.
O governo do trabalhista Tony Blair (1997-2007) sempre ofereceu apoio à “guerra ao terror” proclamada pelo presidente americano George W. Bush. O Reino Unido participou da coalizão montada pelos EUA para a invasão do Iraque, em 2003, ao contrário da França e da Alemanha, que a condenaram. Mas Blair e seu gabinete sempre negaram as denúncias do envolvimento britânico nas operações subterrâneas da CIA amparadas pela permissão da Casa Branca ao uso de “métodos intensificados de interrogatório”. Os relatórios do ISC provam a extensão da mentira. Depois deles, não é mais possível alegar que agentes de inteligência britânicos agiram por conta própria em episódios isolados ou excepcionais. Não se faz isso com tanta frequência e por tanto tempo sem o aval do próprio governo.
Sob a democracia, a verdade pode tardar, mas acaba aparecendo. O ex-primeiro-ministro David Cameron (2010-2016) tentou sepultá-la, interrompendo o inquérito conduzido pelo juiz Sir Peter Gibson, deflagrado pelas suspeitas sobre a participação britânica numa série de entregas ilegais de suspeitos. O ISC, porém, desafiou o veto do chefe do governo, lançando sua própria investigação. Num ambiente de livre concorrência política, nenhum governo é capaz de mentir por todo o tempo.
O acúmulo de provas sobre o papel desempenhado pelo Reino Unido nas violações em massa de direitos humanos fecha o caminho da ocultação. Em maio, diante de evidências judiciais devastadoras, a primeira-ministra, do Partido Conservador, Theresa May pediu desculpas oficiais ao casal líbio Abdel Hakim Belhaj e Fatima Boudchar, entregues pelos britânicos a um centro de tortura sob controle da CIA. Agora, líderes conservadores e trabalhistas erguem as vozes para exigir que o governo reinstale um inquérito judicial sobre a colaboração das agências britânicas na guerra suja da CIA.
Ken Clarke, figura histórica do Partido Conservador, ministro do Interior entre 1992 e 1993, no governo de John Major, colocou o dedo na ferida, explicando que o ISC não tem a autoridade de colher depoimentos de antigos oficiais de inteligência, algo que exige um inquérito judicial. Ele formulou a indagação crucial: “o que estamos encobrindo sobre aquilo que foi feito no governo de Tony Blair?” Do outro lado da divisória partidária, Emily Thornberry, ministra do Exterior do “shadow cabinet” trabalhista* , juntou-se a Clarke na exigência de uma investigação judicial capaz de iluminar a “verdade inteira”.
Os conservadores da velha geração ressentem-se do prolongado esquecimento a que foram condenados desde a ascensão de Blair ao poder. Muitos deles querem a “verdade inteira” para saborear uma vingança tardia. Já no Partido Trabalhista, a “verdade inteira” serve para enterrar de vez a herança política do centrista Blair, consagrando a hegemonia atual da corrente esquerdista de Jeremy Corbyn. Como acontece não poucas vezes, nesse caso a política com “p” minúsculo desempenha funções úteis à Política com “P” maiúsculo. O relatório do ISC indica que, ao longo de anos, o governo britânico infringiu as leis, violou tratados internacionais e enganou deliberadamente o Parlamento e a opinião pública.
“Devemos nos assegurar de que aprendemos com os erros do passado, para que eles jamais se repitam”, disse Alan Duncan, vice-ministro do Exterior de May, aos parlamentares, prometendo breve resposta à solicitação de um inquérito judicial. O capítulo britânico da “guerra ao terror” precisa vir à luz na sua totalidade, não em nome de uma vingança política ou de uma disputa partidária faccional, mas dos direitos humanos. A “verdade inteira” é indispensável para restaurar o compromisso britânico com o império da lei e com os direitos humanos. E, sobretudo, nessa “era Trump”, serve para costurar um consenso mínimo europeu contra a barbárie.

* Shadow cabinet: No sistema político britânico, o principal partido de oposição monta um governo paralelo, que espelha o governo oficial, e formula proposições alternativas.

 

 

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