AS ORIGENS DO FEMINISMO

 

Elaine Senise Barbosa 

(Historiadora; autora de obras didáticas e paradidáticas; editora-executiva deste site)
29 de maio de 2018

 

Marcha das operárias russas no dia 8 de março de 1917

Marcha das operárias russas no dia 8 de março de 1917

 

É quase um segredo, mas foi uma mobilização de operárias que desencadeou as jornadas de fevereiro da Revolução Russa. É Leon Trotsky quem conta:

O dia 23 de fevereiro era o Dia Internacional da Mulher. (…) as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve. Foi “contra a vontade”, escreve Kayurov, que os bolcheviques entraram na greve, secundados pelos operários mencheviques e socialistas revolucionários.  (…) É evidente que a Revolução de Fevereiro foi iniciada pelos elementos de base, que ultrapassaram a resistência de suas próprias organizações revolucionárias, e que esta iniciativa foi espontaneamente tomada pela camada proletária mais explorada e oprimida que as demais – as operárias da indústria têxtil, entre as quais, deve-se supor, estavam incluídas numerosas mulheres casadas com soldados. O impulso decisivo originou-se das intermináveis esperas nas portas das padarias.[1]  

Cento e vinte e oito anos antes, quando o lema da Revolução Francesa –“Liberdade, igualdade, fraternidade” – apenas começava a ecoar pelas ruas de Paris, já era possível ver as mulheres reunidas aos homens em seu protesto contra a crise e em favor de reformas. Jules Michelet afirma, em sua História da Revolução Francesa, que coube às mulheres, nos momentos decisivos, como mães em desespero por sua prole, empurrar os homens para a ação. Sem elas e sua marcha à Versalhes para “buscar o padeiro e a padeira” no dia cinco de outubro de 1789, talvez Luis XVI jamais tivesse assinado a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e tampouco a corte teria sido transferida para Paris.

As mulheres lutaram pelos interesses do povo, em 1789 e 1917. E, entre uma revolução e outra, a Francesa e a Russa, assistiu-se ao nascimento do movimento feminista. Em boa parte do século XIX, foram as concepções liberais que orientaram as reivindicações das mulheres em sua luta para escapar ao pátrio-poder e se tornarem cidadãs plenas, sendo a conquista do direito ao voto vista como o ápice da emancipação.

Entretanto, o século XIX também viu nascer a sociedade industrial e as fábricas têxteis, onde as mulheres iriam conhecer um novo tipo de exploração econômica, que só reforçaria a condição historicamente explorada e submissa das mulheres. Como reconheceu o líder bolchevique, as mulheres pertenciam à “camada proletária mais explorada e oprimida”. Com o movimento operário, vieram as ideias socialistas e novas formas de luta e organização política, das quais rapidamente as mulheres participaram ativamente. As socialistas também desejavam votar, mas suas ambições iam além das conquistas de direitos civis baseados no indivíduo. Elas lutavam pela construção de uma nova ordem social e econômica que também pudesse mudar o paradigma das relações entre mulheres e homens. A diferença de objetivos – educação e voto, de um lado, o fim do capitalismo, de outro – dividiria a primeira geração do movimento feminista.        

 

A ERA LIBERAL E AS PRECURSORAS DO FEMINISMO  

O resultado final da Revolução Francesa, para as mulheres, ficou expresso na ordenação jurídica mais importante produzida pelo liberalismo, o Código Civil Napoleônico, de 1804. Essa lei, que foi modelo para legislações de muitos outros países,  partia do princípio da subordinação da mulher ao homem, obrigando, por exemplo, a esposa a sempre concordar com seu cônjuge, de cuja autorização dependia para poder trabalhar ou iniciar uma ação legal. O verdadeiro avanço expresso no Código foi a definitiva separação entre Igreja e Estado. A partir daquele momento o Estado assumia a prerrogativa de legislar sobre as relações familiares, instituindo o casamento civil e o divórcio. Se, por um lado, desnudava-se o aspecto econômico do contrato de casamento, negociado minuciosamente pelos pais, por outro deixava-se uma porta aberta para as mulheres alcançarem a liberdade, principalmente se provenientes de famílias liberais.

Foram essas felizardas as primeiras a questionar, com suas palavras ou exemplos, a validade do pátrio-poder e a santificada relação entre mulheres e maternidade. Seguindo pela via do liberalismo, reivindicavam sua condição de indivíduos capazes de contribuir para o progresso da ordem social devido a capacidade pessoal. Em comum, todas elas tiveram acesso à educação e fizeram desse um ponto central em suas reivindicações.

Mary Wollstonecraft, a matriarca do feminismo

Mary Wollstonecraft, a matriarca do feminismo

A britânica Mary Wollstonecraft, nascida em 1759, tornou-se uma espécie de grande matriarca da história do feminismo. Ela abandonou a casa paterna aos dezenove anos para viver com um homem mais velho, de quem se separou dois anos depois. Trabalhou como professora, escreveu sobre educação e foi editora de uma revista literária. Após um rápido casamento, em 1796, passou a viver com William Godwinn, um precursor do anarquismo e da literatura de terror. A obra mais famosa de Mary Wollstonecraft é A reivindicação dos direitos da mulher, publicada em 1792. O foco de suas reflexões estava na submissão das mulheres aos homens. Para ela o progresso da sociedade dependia do progresso de homens e mulheres, a educação era o principal instrumento para a emancipação feminina e o casamento era uma espécie de escravidão consentida.

Tais ideias conquistaram o apoio de Robert Owen, um dos expoentes do cooperativismo, que incluiu as reivindicações das mulheres no rol das preocupações políticas. O Movimento Cartista, que varreu a Inglaterra na década de 1830 exigindo a  reforma do sistema eleitoral, queria o voto universal masculino. Contudo, uma de suas correntes, a União Nacional da Classe Trabalhadora, já reivindicava o voto universal para ambos os sexos. Mas o tema só ganhou ares de respeitabilidade quando o liberal John Stuart Mill escreveu A sujeição das mulheres, em 1869. Numa época em que a inferioridade física e intelectual das mulheres era vista como um fato tão natural quanto divino por cientistas e religiosos, Mill defendeu a igualdade de capacidades entre os sexos e taxou de irracionais e atrasadas as afirmações em contrário.

Enquanto discutia-se, um número crescente de mulheres começaram a agir de acordo com suas convicções, rompendo com as convenções sociais e frequentemente pagando um preço alto por isso. A aristocrata francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, vulgo George Sand, abandonou o marido para se tornar a primeira escritora a viver de seu trabalho. Seus folhetins eram narrativas românticas nas quais o verdadeiro amor finalmente triunfava sobre as convenções sociais. Ela vestia-se como homem e fumava charuto em público, provocando escândalo na sociedade parisiense.

A aristocrata franco-espanhola Flora Tristan, avó do pintor Paul Gauguin, começou a trabalhar muito cedo, após a morte de seu pai, um evento que lançou a família à miséria. Casou-se por necessidade e, para escapar ao tédio da relação sem amor, decidiu estudar. Abandonou o marido violento para lutar por reformas sociais, tendo sido a primeira pessoa a relacionar a emancipação das mulheres à emancipação da classe trabalhadora e a propor a criação de uma associação internacional da classe trabalhadora.

Louise Michel

Louise Michel

Louise Michel é um mito na história do proletariado francês. Nascida de uma tão comum relação entre o filho do patrão e a empregada doméstica, criada pelos avós paternos, tornou-se professora. Colecionou problemas profissionais por se recusar a fazer o juramento de fidelidade ao imperador. Vestiu o uniforme da Guarda Nacional para lutar na Comuna de Paris, em 1871, em nome dos ideais igualitários e do anarquismo. Presa e deportada, voltou ao país dez anos depois e retomou sua militância com igual intensidade, viajando por toda a França e proferindo palestras para trabalhadores, entre um detenção e outra. Sua morte causou forte comoção e seu enterro atraiu multidões, paralisando Paris.

De certo modo, as pioneiras do feminismo – de que as personagens descritas acima são só um exemplo – são tributárias do romantismo e do nacionalismo. O ideal do amor romântico ao qual as moças aspiravam ajudou a colocar em xeque o casamento por conveniência. O projeto nacionalista da uniformidade traduziu-se na expansão do ensino público, obrigatório e gratuito, para ambos os sexos. A educação conferiu às mulheres, especialmente da classe média em expansão, a oportunidade de trabalhar como vendedoras, atendentes e secretárias, reduzindo o alcance do pátrio poder e assegurando a independência econômica que permitia adiar o casamento ou mesmo recusá-lo.

 

O DIA INTERNACIONAL DA MULHER, UM “LUGAR DE MEMÓRIA”

A luta pelo voto foi o foco das diversas entidades, comitês e jornais criados a partir da segunda metade do século XIX por mulheres das classes média e alta. Segundo consta, em 1906 o jornal Daily Mail chamou as defensoras do voto feminino de sufragetes, com uma conotação claramente pejorativa. A expressão caiu no gosto das militantes e passou a identificar as mais radicais, ou seja, as que saiam às ruas para se manifestar, em ações cada vez mais combativas, até atingir o ápice em 1913, quando Emily Davison pôs fim à própria vida atirando-se sob as patas do cavalo do rei inglês George V a fim de chamar a atenção para a questão do voto feminino.

Paralelamente, outra temática mobilizava um número ainda maior de mulheres, embora com um nítido recorte de classe: a luta pelos direitos trabalhistas e contra a superexploração do operariado têxtil. A ideia de “pagamento igual para trabalho igual”, uma ousadia sugerida apenas pelas mais radicais, só bem mais tarde converteu-se em reivindicação geral.

Instituíram-se datas de mobilização geral das mulheres trabalhadoras, embora elas variassem de lugar para lugar. Oficialmente, foi no II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagen, em 1910, que surgiu a ideia de se criar um Dia Internacional das Mulheres, nos moldes do Primeiro de Maio, para concentrar atos políticos em favor dos direitos das mulheres. A autora da proposta foi a alemã Clara Zetkin, dirigente do Partido Social-Democrata e amiga de Rosa de Luxemburgo, com quem participaria da criação da Liga Spartacus e, depois, do Partido Comunista da Alemanha, pelo qual elegeu-se deputada.

Datas de comemoração, lembrança e luta são símbolos poderosos. Zetkin não sugeriu uma data para o Dia das Mulheres e, nos primeiros anos, a comemoração realizava-se em datas diversas nos diferentes países. Não se sabe ao certo como a celebração acabou se fixando internacionalmente no 8 de março. Mas a divergência entre a mais provável origem histórica da data e a narrativa predominante sobre ela evidencia um combate subterrâneo pela apropriação de um “lugar de memória”.

Na Rússia, em 1917, celebrou-se o Dia das Mulheres no 8 de março (23 de fevereiro pelo calendário juliano adotado no império dos czares). Naquele dia, as operárias têxteis deflagraram a Revolução de Fevereiro – e esse fato tem tudo para ser a origem da generalização da data. Curiosamente, porém, no imaginário do movimento feminista, a data acabou associada a um evento diferente, que ocorreu nos Estados Unidos, em 1911, mas no dia 25 de março: o incêndio na fábrica têxtil Triangle Shirtwaist Co. que matou mais de uma centena de operárias, rotineiramente trancadas para cumprirem a jornada completa de trabalho.

A greve na Rússia remete à revolução e ao socialismo. O trágico incêndio nos Estados Unidos remete aos direitos gerais dos trabalhadores e à exploração sem travas da força de trabalho feminina, mas não necessariamente à luta anticapitalista. A memória fabricada tem sentido e significado, sobretudo por aquilo que deixa na sombra.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a entrada maciça das mulheres em setores de trabalho até então exclusivamente masculinos foi um divisor de águas. Se os homens sofriam nas trincheiras e morriam lutando, as mulheres, especialmente as da classe média, sofriam pela perda da segurança que durante séculos haviam sido ensinadas a buscar no matrimônio e na submissão aos pais e maridos. A partir daquele momento, a sobrevivência da família estava em suas mãos. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, elas conquistavam uma liberdade inédita e podiam finalmente decidir suas próprias vidas.

Encerrado o conflito, os governos encontraram dificuldades para justificar a falta de direitos políticos a quem agora tinha autonomia econômica. As leis eleitorais começaram a se adaptar à nova realidade, a princípio, concedendo o direito de voto apenas às casadas ou alfabetizadas, para depois atingir a universalidade. Dinamarca e Islândia aceitaram o voto feminino em 1915. Na Rússia, o voto chegou com a Revolução. Na Grã-Bretanha, Áustria, Alemanha e Canadá, em 1918. Estados Unidos e Holanda, em 1919. No Brasil, em 1932, ampliado em 1934 pela constituição varguista. Na França, contudo, as mulheres tiveram que esperar até o fim da Segunda Guerra Mundial e, em alguns cantões suíços, até 1971.

 

SUFRAGETES VERSUS SOCIALISTAS

Rosa Luxemburgo sempre recusou qualquer função estritamente ligada às mulheres no Partido Social-Democrata alemão. Ela reconhecia a importância da luta das mulheres para a emancipação geral do proletariado, mas não via com bons olhos as reivindicações parciais das senhoras burguesas. Em 1912, em um discurso sobre o Dia Internacional das Mulheres, disse:

A maioria dessas mulheres burguesas que atuam como leoas na luta contra as “prerrogativas masculinas” agiriam como dóceis carneiros, alinhando-se à reação conservadora e clerical se tivessem o direito de votar. De fato, elas seriam certamente bem mais reacionárias que a parcela masculina de sua própria classe. Postas de lado as poucas que têm empregos ou profissões, as mulheres da burguesia não tomam parte na produção social. Elas nada são senão co-consumidoras da mais-valia que seus maridos extraem do proletariado. Elas são parasitas dos parasitas do corpo social.[2]         

Efetivamente, as associações de sufragetes tenderam a se desvincular de qualquer proposta revolucionária reafirmando sua adesão ao status quo e condenando a  Revolução Russa. Para elas, a emancipação feminina não dependia de nenhuma ruptura violenta com a ordem existente. De fato, a conquista do direito de voto acabou levando à desarticulação das sufragetes, o setor liberal do movimento feminista, e aquelas que seguiram na vida política o fizeram inscrevendo-se em partidos políticos existentes.

A Revolução Russa, por outro lado, incorporou a problemática feminina desde os primeiros instantes. Deve-se à figura de Alexandra Kollontai, a única mulher eleita para o Comitê Central bolchevique em 1917, o encaminhamento de reformas referentes às mulheres e às relações familiares. Kollontai tornou-se conhecida pela defesa do amor livre, que separava a sexualidade da instituição do casamento, considerado uma instituição essencialmente burguesa. Quanto aos filhos, eles deveriam ser criados de forma mais coletiva, e não como propriedade dos pais. Na condição de Comissária para Assuntos de Bem-Estar Social, Kollontai fundou o Departamento Feminino do Partido Comunista (conhecido pela sigla Zhenotdel).

As novas leis criadas pelo Estado Soviético estabeleceram a igualdade plena entre mulheres e homens, acabaram com a distinção de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, deram a ambos os cônjuges a possibilidade de requerer o divórcio. Entretanto, o processo de reformas sociais foi atropelado pela instalação da ditadura stalinista e a questão feminina acabou suprimida. No fim, as militantes comunistas (mas não as anarquistas) renderam-se ao realismo político e, em defesa da União Soviética, calaram-se sobre a luta das mulheres.

 

O voto era apenas o começo

O voto era apenas o começo…

 

 

Este texto é uma versão resumida e parcialmente modificada do capítulo “As mulheres e o feminismo”, publicado originalmente no livro O mundo em desordem [1914-1945] (Liberdade versus Igualdade v.1), Rio de Janeiro; Record; 2011. 

 

[1] TROTSKY, Leon. A História da Revolução Russa – A queda do tzarismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 102-103.

[2] LUXEMBURGO, Rosa. Women’s Suffrage and Class Struggle. Second Social Democratic Women’s Rally, Stuttgart, 12 de maio de 1912.

 

 

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