NA SÍRIA, MORRE A “RESPONSABILIDADE DE PROTEGER”

 

Demétrio Magnoli

16 de maio de 2018

A mensagem oculta é que o extermínio permanente de civis em bombardeios indiscriminados contra cidades e povoados foi “normalizado”

armas químicas

Donald Trump tinha que fazer cumprir sua “linha vermelha”. Afinal, quando estiver diante de Kim Jong-un, em maio ou junho, precisa ser levado a sério. Emmanuel Macron pretendia projetar a França como principal potência geopolítica da União Europeia, na hora especial do Brexit. Do outro lado do Canal, Theresa May não podia furtar-se a agir, pois deve provar que o Brexit não implica irrelevância. A política internacional é feita de interesses – mas, apesar de tudo, havia um valioso princípio em jogo no ataque das três potências ocidentais ao regime sírio, sábado, 14 de abril. Sem ele, evaporaria o tabu que cerca o uso de armas químicas.

Segundo a Ilíada e a Odisseia, flechas envenenadas foram usadas, tanto por gregos quanto por troianos, na mítica Guerra de Troia. Relatos do uso de fumaça tóxica pontilham as narrativas das guerras ancestrais, na China e na Índia. Os espartanos queimaram enxofre na Guerra do Peloponeso. Os persas empregaram dióxido de enxofre contra os romanos, precisamente no que hoje é a Síria, no terceiro século antes da era cristã. Mas a guerra química em larga escala só começou na era industrial.

Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), franceses e alemães empregaram vastas quantidades de agentes químicos – cloro, fosgênio e gás mostarda, entre outros. Depois, armas químicas foram usadas em guerras coloniais por franceses, espanhois, italianos e japoneses. As câmaras de extermínio nazistas basearam-se no uso sistemático de Zyklon-B, um gás cujo principal componente é o cianeto de hidrogênio.

O Iraque de Saddam Hussein empregou gás mostarda contra forças iranianas, na década de 1980, e exterminou milhares de curdos iraquianos no povoado de Halabja, em 1988, em bombardeios aéreos que continham o mesmo gás mostarda, além de sarin e tabun. O regime sírio de Bashar Assad utilizou, diversas vezes, sarin, gás mostarda e cloro, geralmente em bombas de gravidade, contra combatentes e civis em áreas urbanas controladas pelas forças rebeldes.

O tabu, expresso nas leis de guerra, configurou-se antes da Primeira Guerra Mundial, na Convenção de Haia de 1899, que proibiu o uso de “veneno e armas venenosas”. As violações massivas da proibição durante a guerra conduziram à adoção do Protocolo de Genebra (1925), hoje firmado por 133 nações, que vetou o emprego de armas químicas e biológicas. Finalmente, a Convenção sobre Armas Químicas (1993) proibiu a produção, armazenamento e uso desses agentes e estabeleceu a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAC), sediada em Haia, que conta com 192 Estados-membros. Entre os signatários, EUA, Rússia, Japão, Índia, Líbia, Iraque e Síria declararam possuir estoques de agentes químicos e assumiram o compromisso de eliminá-los gradualmente. Israel, que assinou a Convenção mas não a referendou, e a Coreia do Norte, que não a assinou, mantêm armas químicas.

“Eu não tracei uma linha vermelha; o mundo a traçou”. Barack Obama tinha razão quando, com essas palavras, alertou o regime sírio, ameaçando retaliação no caso do emprego de armas químicas. Mas a retaliação não veio. No rastro do ataque de 21 de agosto de 2013, na periferia de Damasco, que deixou cerca de 1.500 civis mortos, inclusive mais de 400 crianças, ficou patente a paralisia dos EUA, do Reino Unido e da França. No lugar da devastadora represália prometida, Obama aceitou um acordo costurado pela Rússia com seu aliado sírio que, supostamente, produziria a eliminação dos estoques de agentes químicos mantidos por Assad. O recuo desmoralizante abriu caminho à intervenção russa na guerra síria, em 2015, e à retomada do emprego de armas químicas pelo regime sírio.

Trump, ainda apenas um magnata da construção civil, não ligava para a “linha vermelha” em 2013, quando aconselhou Obama a “guardar a munição para outro dia mais importante”. Já em 7 de abril de 2017, na Casa Branca, diante de outro ataque químico promovido pelas forças de Assad, ordenou um bombardeio limitado na Síria, que destruiu a base aérea de Al Shayrat. De certo modo, o abril de 2017 impôs o abril de 2018: uma desmoralização comparável à de Obama seria o preço a pagar pela inação.

As leis de guerra inscrevem-se na esfera do direito humanitário. Já a “responsabilidade de proteger” (R2P) inscreve-se no campo mais amplo dos direitos humanos. A R2P é a obrigação de agir para prevenir crimes de guerra, operações de limpeza étnica, crimes contra a humanidade e genocídios. A doutrina, proclamada pela ONU em 2005, surgiu como resposta a dois fracassos trágicos das Nações Unidas na proteção de civis indefesos diante de regimes sanguinários: o genocídio de Ruanda (abril-julho de 1994) e o massacre de Srebrenica, na Bósnia (julho de 1995). As célebres “linhas vermelhas” de Obama e Trump ignoram a R2P.

A ONU desistiu de contar os mortos na guerra síria. Hoje, estima-se que são algo entre 350 mil e 500 mil, em sua imensa maioria civis. Além deles, a barbárie deixou mais de 7,5 milhões de deslocados internos e cerca de 5,1 milhões de refugiados. O ataque químico em Duma, um crime abominável, matou dezenas de pessoas. Nas semanas anteriores, mais de 1.500 civis morreram em Duma sob bombardeios inclementes das forças de Assad. De Obama a Trump, os EUA e seus aliados europeus concentram-se exclusivamente no tabu sobre as armas químicas. A mensagem oculta é que o extermínio permanente de civis em bombardeios indiscriminados contra cidades e povoados foi “normalizado”. A guerra síria é um sinal verde para as futuras Ruandas e Srebrenicas.

 

 

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